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segunda-feira, 7 de maio de 2012

Pequena jóia

O cheiro estava em toda a casa. A televisão estava ligada na sala, e no sofá estava apenas o controle. Na cozinha tocava o disco arranhado, uma seleção especial e carinhosa das músicas que todos ouviam juntos aos domingos. Uma janela enorme, com bordas enormes de madeira, fazia da mesa, arrumada sob o jardim, um perfeito quadro. A grama lá fora era verde, e como tinha chovido na noite anterior, o clima era incrivelmente agradável. Na mesa tinham três pratos, três garfos, três facas e três copos.

O prato do dia era a especialidade da chefe-de-cozinha. Ana fez um curso de culinária na Itália, sempre levou jeito, mas sua paixão mesmo era a medicina. E nada é por acaso. Acabou conhecendo Vicente, com que está casada até hoje, na faculdade. Os dois começaram a namorar antes da residência, e se casaram depois de cinco anos de namoro, quando Ana descobriu que estava grávida. Compraram uma casa enorme, com o portão branco gradeado, garagem para dois carros, um gramado gigante parecido com um tapete e uma roseira encantadora (da qual se orgulhavam tanto).

Todos que viam a barriga de Ana, comentavam o quanto o filho seria lindo, tendo em vista que ela tinha olhos arredondados e claros, um semblante espontaneamente feliz, que a fazia parecer estar sempre sorrindo. Já Vicente era alto e tinha a pele da cor do pôr-do-sol. Os dois juntos formavam um casal perfeito, logo seriam a família perfeita. Então veio ao mundo Letícia.

A primeira filha do casal nasceu saudável e, como previsto, incrivelmente linda. Cresceu em um ambiente iluminado, desses de conto de fadas. Quanto mais Letícia crescia, mais linda ficava, com aqueles olhos grandes e os cachos mais brilhosos do universo inteiro. Crescia cada vez mais inteligente, era a criança mais esperta de sua turma e sempre mostrava ser natural toda aquela simpatia. No aniversário de Vicente, Ana decidiu fazer um pequeno jantar pros mais íntimos. Na cozinha já estava quase tudo pronto.

O telefone de Vicente tocou antes do combinado, Ana soluçava se afogando em choro sem mal conseguir formar sequer uma palavra. Tudo que ele entendeu foi o nome do hospital onde trabalhava, e a ultima frase em tom de desespero: Venha para a urgência!

Ana estava dando os ultimos caprichos na janta enquanto brincava de esconde-esconde com Letícia.

- Minha jóia, venha cá! Seu pai já já vai chegar! Vamos pegar algumas rosas pra ele. Onde você está, filha? Você está ficando boa nis...- Um silêncio aterrorizante na consciência de Ana veio a tona, Letícia estava deitada sobre uma poça de sangue.

Depois de horas dentro da sala do amigo, Vicente saiu desconsolado. Ana partiu pra cima dele com todos aqueles termos médicos e perguntas que envolviam seus sentimentos e medos. Nenhum médico saberia explicar o que aconteceu. Letícia teve uma hemorragia interna e sangue saiu pelo nariz até que ela ficasse inconsciente e viesse a falecer horas depois.

Então todos os domingos Ana cozinhou o prato favorito de Letícia, colocou o prato no lugar que ela costumava sentar-se e ouvia as músicas que ela e o marido costumavam ouvir. O jardim foi ficando cada vez menos verdes, o sabor na comida foi sumindo aos poucos. Um casal jovem com um peso enorme nas costas, e toda a perfeição deixou de existir.

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